Publicado: 12/11/2025
Por Maria Torrens
No Concurso Literário Olga Grechinski Zeni, nosso campus conquistou o 1º e o 2º lugares na categoria “conto”, representando novamente a escola em nível nacional.
A seguir, convidamos você a ler e se encantar com os contos premiados!
Em 2º lugar, a aluna Helena Vitória Hagsma Beida Stresser, do 3º Info Manhã.
O Sonho que nos Conecta
Nos céus, pairava uma massa cinza, fúnebre e avassaladora, de um dia que seria marco de dor e violência na história do país. Milhares de homens lutando até os seus últimos resquícios de fôlego para defender a pátria de oponentes ardilosos, tão bem armados com artilharia e canhões, sedentos pela tomada daquele território e negando o valor de todas as vidas tiradas com tamanha ferocidade a troco de expansão das suas terras e soberania.
Soldados caíam agonizando por todos os lados, feridos. Homens que tinham uma família aguardando ansiosamente a sua volta para casa. Um deles, que acabara de ser atingido, desmoronou ao chão, arfando e grunhindo de dor, levando a mão ao peito: lugar em que seu sangue expelia, mas também, em que abrigava grandes sonhos. No bolso esquerdo da sua farda, estava uma carta que escrevera há poucos dias atrás, com uma letra um tanto quanto desleixada, pois seu tempo fora da linha de frente era curto. Nela, o soldado expressava amor, medo e saudades para sua família, bem como comentava que não havia desistido do sonho de ser médico assim que a guerra tivesse um ponto final, porém, não teve a oportunidade de enviá-la aos seus entes tão amados, que sempre ficavam muito animados para ler suas correspondências.
O soldado sabia que naquela situação poderia correr riscos muito grandes, mas nunca negou ajuda alguma à ninguém, muito menos à sua pátria, e isso o tornava quem ele era, um homem de coração compassivo que realizava sacrifícios por quem quer que fosse.
O céu, que antes beirava a escuridão, nesse momento se abria de uma forma sobrenatural, em tons claros de azul. Dentre as nuvens, transpareciam rostos familiares para o soldado, sua esposa com seu filho aninhado nos braços. A mulher estava com um sorriso de verdadeiro orgulho estampado em sua face, e o pequeno bebê, com traços nítidos do pai, alegrava-se batendo palmas. Junto deles, outro garoto acenava, ele estava vestindo um jaleco branco, e tinha um estetoscópio sobre a curva do pescoço. Quando o homem percebeu que era a imagem de si mesmo mais jovem, vestido à caráter do seu sonho mais inestimável, seus olhos se debulharam em lágrimas e seu semblante foi tomado por um leve sorriso ao ver aquela pequena criança sonhadora do seu passado.
E ali, estirado ao chão de terra partida, em uma das mãos segurava contra o peito a carta não enviada, que agora, possuía um papel colorido pelo vermelho do seu próprio sangue. A outra mão, subiu aos céus, buscando alcançar aquelas pessoas tão especiais para a sua vida, que lhe diziam com o olhar o quanto ele havia se esforçado. O braço que estava estendido para cima, pela falta de força, foi parar no chão junto ao seu corpo. A visão se dissipou aos poucos, desvanecida pelas lágrimas e por um clarão que se expandiu por completo em segundos. A mão que segurava a carta se desprendeu, e o vento a levou para alguns metros de distância, aterrando-a sob pedregulhos. Sua hora havia chegado, e já não existia mais dor, apenas uma última lembrança preciosa de quem ele mais amava e de um sonho que perdurou até mesmo naquele intervalo tênue do fim e do que poderia ter sido.
Anos se passaram. O campo de batalha deu lugar a arbustos e plantas rasteiras que floresciam na primavera. A guerra tornou-se uma memória incômoda e dolorosa, daquelas que voltam e apertam os corações enlutados de tempos em tempos.
Desde então, a família daquele soldado não havia mais tocado no assunto. Eram mudos e choravam pela perda quando estavam longe do menino, que agora, já estava crescido e curioso para saber sobre o pai. Ele sempre questionava a mãe com perguntas como: “Do que o meu pai gostava?”, “Ele tinha cabelos castanhos como os meus?”, tentando refletir se algo naquele alicerce paterno ausentado da sua vida se parecia ao menos um pouco com sua própria identidade. Porém, a mulher jamais o respondia. Queria esquecer aquela dor e reconstruir o que tinha sido destruído pela guerra, mas isso era quase impossível sendo a todo momento interrogada por um menino que sentia falta de um pai que nem chegou a conhecer de fato. E para agravar ainda mais, o menino era a réplica dele, não somente a aparência, mas até mesmo a personalidade era idêntica a do pai. Estava constantemente em prontidão para ajudar, inclusive, pessoas que nunca tinha visto anteriormente, e isso enchia a mulher de uma nostalgia angustiante.
Em uma manhã de sol, o garoto, cansado de obter respostas vazias ou nulas para as suas perguntas, saiu com a sua bicicleta passear e desbravar o mundo fora de casa. Pedalou tanto, que encontrou um terreno vago rodeado por arbustos e pequenas flores que tinham acabado de desabrochar. Pensou em levar um buquê delas para sua mãe, para ver se aquele olhar triste se transformava ao receber flores com cores tão vibrantes. Ele deixou a bicicleta encostada sobre o chão e invadiu aquele lugar que, para ele, ainda era inexplorado.
Seus pés andavam com cuidado, observando cada detalhe e colhendo as flores que lhe chamavam mais atenção, até que em um certo ponto, viu um fragmento de papel em meio a uns rochedos. Sua curiosidade foi tamanha que não a sustentou, e correu para descobrir do que se tratava. Ao pegar o papel, identificou que era uma carta, bastante deteriorada e manchada com algo que não sabia o que era. A letra, quase ilegível pelo efeito do tempo, fez seus olhos esmiuçarem-se para ler, e quando chegou ao fim, notou algo que o surpreendeu. A carta foi escrita pelo seu pai! O nome, uma das poucas informações que sabia sobre ele, estava ali como remetente, e isso foi comprovado quando encontrou o destinatário, era sua mãe. Entre aquelas palavras apagadas, soube que seu pai tinha um grande sonho: ser médico, e isso o preencheu com um propósito. Iria realizar aquele sonho, pelo seu pai. Um homem destemido a ajudar, assim como ele.
Décadas se estenderam, e um novo consultório estava sendo inaugurado na cidade. O médico que ali atendia já era muito reconhecido pelos moradores e pelo país a fora. O homem era alto, tinha uma boa aparência e a bata branca lhe caía bem, mas o que realmente despertava encanto, era a sua determinação para ajudar os que precisavam, porque além de médico, também era voluntário em diversas organizações beneficentes ao redor do mundo, e como seu pai, não negava à ninguém o que lhe pediam. O que o motivava a seguir em frente era o sorriso de cada pessoa que conseguia amparar, para ele, não havia nada mais valioso que ver a gratidão expressa olhar de quem necessita de apoio, muito menos, a sincera felicidade de uma criança, público que tanto o admirava pelo seu bom humor durante as consultas ou auxílios.
Neste dia de inauguração, o médico orgulhoso pela sua conquista, mas muito mais, pela realização de um sonho tão desejado pelo pai, que sem sombra de dúvidas estava aplaudindo o filho de um lugar distante, expôs na parede branca do consultório, em uma moldura com relevos dourados, não um certificado, mas sim aquela velha carta que encontrara há muito tempo num lugar que já havia sido campo de guerra.
— Meu pai — pensou alto o médico, sentindo seus olhos aguarem antes mesmo de começar a falar. — Lamento muito que o senhor não teve a chance de tornar o seu sonho realidade, mas tenho certeza que lutou até o seu limite pela nossa nação, por todas as pessoas que nela vivem. — Sorriu suavemente ao perceber que a guerra não colocou um fim no sonho tão almejado pelo pai, mas o transferiu. — Seguirei nesse caminho por todos que precisam de um porto seguro, mas principalmente, por você. O seu sonho não morreu, pai. — Entre lágrimas, ele tocou o quadro que protegia a carta, como se tocasse o rosto do pai, desejando que ele estivesse ali, comemorando aquela vitória junto dele. — Ele vive em mim.
O médico sentiu um toque terno em seu ombro. Ao se virar, atendendo ao seu desejo, ali estava o pai, com a mesma aparência surrada e abatida da guerra. Desacreditado, o médico chorou e, sem pensar duas vezes, abraçou o homem que lhe proveu todo o sentido de uma vida ao deixar aquela carta antes de partir.
— Obrigado, meu filho — disse o homem com a farda amarrotada. — Obrigado por levar meu sonho adiante.
Antes mesmo de conseguir agradecer por tudo, o médico percebeu que aquele abraço se desfez rapidamente, e seu pai já não estava mais dentro daquele consultório. Ele sorriu, feliz pela visita e obstinado a prosseguir o que fazia de melhor: ajudar. Vivendo um sonho deixado para trás, nos escombros de uma guerra.
Helena Vitória Hagsma Beida Stresser com a bibliotecaria Sandra, e os professores Artur e Peterson, da esquerda para a direita.
Em 1º lugar, a aluna Maria Luisa Torrens, do 2º Info Manhã.
Quando o silêncio aprendeu a falar
As guerras nunca foram fáceis. Esta, travada há tanto tempo — tanto que já nem sei quando começou —, está, enfim, chegando ao fim. O fim disso não será bom nem ruim, apenas uma consequência de nossas ações. Seguiremos adiante até chegarmos a Alveris, ou até que todos morram. Estes, os quais digo que podem morrer ou viver, são os homens — criaturas tão simplórias e imponentes como se encontram agora. Passam fome, sede, mutilação, tormentos psicológicos, e ainda assim lutam pela sobrevivência. Mas se esquecem de que, quando não havia essas guerras, não se contentavam com o simples, o belo, o natural. E agora estamos aqui, pagando pelos nossos atos. Nossos inimigos, dominados pelos sentimentos, ainda veem esperança de terminarmos isto de forma pacífica. Porém, tudo dependerá do que o Criador quiser pensar e sentir.
Assinado,
09
Recentemente percebi que, ao nosso redor, a poeira e o cheiro de carnificina estão evaporando — mas acho que sou eu apenas me acostumando com este cenário cruel. Fizemos mais uma caminhada e chegamos a uma cidade abandonada; agora estamos passando a noite aqui. Conseguimos abrigo e comida — algo que eu já não via há uns bons pares de dias. Mas não só de felicidade o Criador quer nos ver. 11 tirou a própria vida com uma de nossas bombas. Foi após uma carta que recebeu. Ela dizia que sua família havia morrido em um bombardeio, e ele não suportou a ideia de viver sem as pessoas que amava. Não foi uma visão agradável. Ninguém esperava que ele surtasse. Agora, comemos suas partes decepadas. O Criador deve ter nojo de nós — mas talvez devesse nos agradecer por não o culparmos por estarmos aqui, comendo um ensopado de restos mortais de nosso ex-companheiro. Sabemos o que fizemos, mas sinto que Ele tem alguma culpa nisso tudo. Ele nos comanda. Ele nos cria. Como um pai amoroso, nos faz ter forças através da dor de nosso irmão.
Assinado,
09
Não contei o que recebi nas cartas destinadas a nós. Fiquei um pouco chocado com a despedida abrupta de 11. Recebi notícias felizes das pessoas que amo — o que me faz agradecer ao Criador, mesmo que pareça contraditório, pela vida boa e próspera que minha família está vivendo. Peço apenas que isto acabe logo. Junto da carta, veio uma foto que me fez ficar nostálgico por alguns momentos. Durante nossa jornada sob o crepúsculo, não pude deixar de sentir algo genuíno — algo que não sentia há tempos: felicidade. Ver todos sorrindo — inclusive eu — naquela fotografia antiga me fez pensar em como eu era tolo. Aquela foto me leva a um cenário distante daqui, onde todos os dias pareciam felizes. Apesar de, no passado daquela foto, eu não me sentir assim e sonhar com um futuro melhor, hoje percebo que nada era tão ruim quanto imaginei. Agora, encontro-me aqui, e não poderia estar mais “contente”.
Estamos no meio de algo que já não tem nada ao redor — somente o vazio. Entretanto, acampamos sob uma árvore velha, mas que ainda tem folhas. A área ao seu redor é verde, com flores e cogumelos. Num espaço como este, em meio ao deserto, encontrar algo assim é como uma miragem — e todos nós estamos incertos sobre o que vem pela frente. O céu começa a expandir em esplendor exonerado, e as cores do entardecer… O dia foi lindo e colorido, quase como se o Criador tivesse esquecido que estamos no meio de uma guerra. Mas isso me fez sorrir para Ele, porque penso em como deve estar lutando arduamente para que isto aconteça. Ele está melhorando a cada dia que passa. Sua expressão adoecida de antes, que se refletia em nosso mundo, já não é a mesma, e eu agradeço por isso.
Assinado,
09
Os dias estão ficando mais claros, como se fosse verão. O céu, de um azul límpido e resplandecente, ilumina os que caminham em direção à luz. Ultimamente eu me sinto feliz e grato — sentimentos que não imaginava sentir neste lugar. Os “números” agora tocam uma sinfonia desarmoniosa, criada neste exato momento. Apesar de desajeitada, ela me faz focar no presente e sentir os bons sentimentos expressados por aqueles que tocam. Ouvi-los é uma das coisas que o Criador deve almejar, já que Ele somente nos escuta — e raramente o deixamos se expressar. Sua vida deve ser triste, mas apesar dessa tristeza profunda, ainda há um pouco de felicidade nela — como nestes breves momentos que temos a oportunidade de viver e apreciar.
Assinado,
09
Recebemos uma notícia boa hoje pela manhã. Talvez o Criador esteja, enfim, do nosso lado. Uma trégua será estabelecida entre o nosso lado e o “deles”, encerrando a guerra. Alguns não ficaram felizes com isso, porque sabem que nosso objetivo não era perder nem fazer as pazes — e sim, vencer “eles” e ter domínio sobre as decisões do Criador. Mas o que adiantaria conseguir isso, se o Criador logo adoeceria com nossas ações? Todos morreriam cedo ou mais tarde. Finalmente irei dormir em paz, sabendo que tudo foi em vão, mas que irei deixar este lugar logo.
Assinado,
09
Fecho seu diário na esperança de descobrir se fui um bom “Criador”. Olhando ao meu redor, sei que não fui. Fiz apenas o que era necessário para me libertar desta situação. Não restou mais nenhum deles — e, ainda assim, sinto gratidão. Eles não eram maus, apenas frutos da minha mente. Estavam me destruindo, e precisei dar um fim a isso. Mesmo que esse fim seja temporário, e tudo se repita infinitamente até que eu morra, sei que me tornarei mais forte a cada ciclo.
Preciso voltar à minha realidade, antes que tudo me consuma por completo. Fecho os olhos por um momento, tentando esquecer aquele cenário. Imagino o que poderia ser melhor. Abro os olhos — e lá estão os bastidores do que imaginei: o céu de um azul sereno e a grama verde reluzente que se estende até onde a vista alcança. Abro o caderno novamente e, inspirado, escrevo algo:
Ele não acordou na manhã seguinte. Foi em paz, e isso era o suficiente. A fumaça, a poeira e o cheiro de carnificina me atingem, e sinto dificuldade em respirar tudo o que criei. Corpos pelo chão, pedaços de vida espalhados, lembranças que se misturam com o pó. O silêncio é absoluto, quebrado apenas por um zumbido insistente — eco da explosão.
A bomba não deixou restos. Nem lembranças, nem pessoas, nem dor. Apenas o vazio — o mesmo vazio que me fez começar tudo isso. Eles lutaram sem saber o porquê, e mesmo assim, em sua ignorância, me ensinaram algo. Enquanto observava 09 e os outros, percebi o reflexo do que eu mesmo era: dividido, doente, tentando dar sentido ao caos que eu havia feito. A guerra era minha. E, quando cessou dentro de mim, cessou também no mundo que eles conheciam.
Agora compreendo: o sofrimento deles foi o preço da minha criação. Eles foram o espelho daquilo que eu não ousava encarar. E, através da dor deles, eu aprendi a sentir. A fumaça se dissipa. Há silêncio, enfim. E nele, encontro paz.
Eu venci.
Maria Luisa Torrens com a bibliotecaria Sandra, e os professores Artur e Peterson, da esquerda para a direita.